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Escotilhas temporais (sobre a pintura de Lucas Arruda)
2021

Para compreender uma situação, para nos localizarmos, muitas vezes precisamos nos lembrar. Presos ao presente como estamos, precisamos frequentemente nos lembrar, para entender ou nos certificarmos sobre como fomos parar ali onde, de fato, nos encontramos agora. Onde e quando, em que momento estamos?
A lógica traiçoeira nem sempre colabora para uma resposta imediata, uma vez que a mente parece constantemente flutuar entre onde estamos e o que está acontecendo no tempo presente e algum pensamento sobre o lugar onde estávamos antes, algum assunto não concluído ou, ainda, algum sentimento de urgência, ansioso, sobre para onde iremos em seguida. Assim, ainda que os fatos ocorram sequencialmente, um depois do outro, a dimensão temporal parece ganhar ocasionalmente um aspecto ilógico e gelatinoso. Isso porque a mente fica presa a momentos que foram vividos de forma mais intensa, e também a outros que nem aconteceram ainda, num sentimento difícil de descrever, como se fosse talvez uma espécie de saudade do futuro. Somos, por assim dizer, reféns das sensações – boas e más; deslizando para frente e para trás no tempo, um tempo particular de cada um, organizado por sensações, num constante flutuar pelo presente.

Dotadas de uma ambiência própria e irreal, as pinturas de Lucas Arruda rementem a lembranças. São oferecidas ao observador como pequenas janelas para o olhar, cumprindo de maneira natural o papel histórico do objeto artístico bidimensional de disponibilizar ilusão de espaço e profundidade. A figuração concentrada é elaborada através de composições organizadas e acessíveis. As imagens variam entre paisagens e a abstração do lugar vazio. E, em algumas pinturas, como as de céu e mar, percebe-se frequentemente a representação relegada em favor do bloco de cor. São realizadas tendo como base um universo cromático próprio e delicado. Assim, quase abstratas, essas telas parecem propagar uma luz própria que ilumina brevemente o espaço a seu redor.

A estranheza da escala é o índice inicial para detectar a atitude renovada que afasta a ação do artista do provável. A escala intimista exige o deslocamento do sujeito, mais aproximação, contato. Horizontes abreviados, por vezes pintados em telas verticais e quadradas, são uma contradição em termos e negam a fruição lisérgica tal qual oferecida nas históricas pinturas atmosféricas de artistas como Claude Lorrain no século XVII, ou Turner na passagem do século XVIII para o XIX. Estando estes mestres, cada qual em seu momento, mais claramente conectados a uma ideia de atmosfera sideral, como a do céu que nos protege.

Impossível deixar de notar o quanto esse lugar vazio de caráter utópico, esse espaço livre e desocupado representado nas pinturas, contrasta com o cenário urbano em que vive hoje a grande maioria das pessoas. Amontoados nas cidades, enfrentando a demanda de um cotidiano acelerado, estamos constantemente cercados por um mundo nervoso e visualmente saturado. Há pouca chance para o vazio no fim do capitalismo. Tanto na esfera do real, lugar povoado por ruídos, imagens e os mais diversos objetos, quanto na do virtual, rápida, aflita e retransfigurada a cada clicada. Dessa perspectiva, a imagem desse espaço vazio, fictício e livre, presente nas telas de Lucas Arruda, pode ser lida como uma metáfora da nossa busca inconsciente por um mundo idealizado, aprimorado. Pode-se enxergar no equilíbrio da justaposição de cores, bem como na breve claridade que emana do quadro – onde toda a luz é sutilmente coordenada pela cor – essa imagem que corresponde a das lembranças idealizadas. A imagem harmônica de uma sensação gerada por uma memória aperfeiçoada, amplificada e sentimentalizada, o tipo de lembrança que reelaboramos em pensamentos repetitivos, por vezes involuntários. Como quando, sem chance de escapar de certas memórias que insistem em retornar, entramos num curioso processo de aperfeiçoamento e vamos "melhorando" a lembrança, na mesma medida em que vamos nos lembrando daquilo que gostamos e elegemos recordar. Ocasionalmente, dentro desse processo mental de repetição, e já à beira de um estado de torpor, ocorre o esgarçamento dos vínculos com o real, que algum dia porventura tenha gerado aquela memória. O que resta é apenas uma imagem difusa, uma sensação.

A escala e a imagem concentrada propõem ainda uma inusitada transformação do lugar do observador, que se pergunta "onde estou, onde entrei? ". Como marcadores temporais, as pinturas de Lucas Arruda reportam-se a momentos. Inicialmente confuso sobre exterior e interior, o sujeito subitamente descobre-se dentro. Mas dentro de onde? Singular arquitetura não moderna, de pequenas janelas. Amplidão e despojamento excluídos, o espaço expositivo povoado de janelinhas lateja e deforma, na medida em que o olhar do observador entra e sai dos diversos mini-mundos apresentados.

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Penny sai para passear no novo planeta, onde a nave pilotada por seu pai, o Professor Robinson, da série americana para TV "Perdidos no espaço ", acaba de pousar. O tempo está bom e o planeta classe " M" oferece um bom nível de oxigênio para se respirar. Subitamente, no meio do nada, Penny se defronta com um estranho espelho, grande e imponente, adornado com uma moldura Art-Nouveau. Numa clara referência a "Alice através do espelho ", de Lewis Carroll, Penny entra no espelho e lá se encontra com o " gênio do espelho", que então lhe apresenta a singularidade de sua dimensão. Do interior da caverna amorfa é possível alcançar visualmente qualquer parte do mundo, qualquer lugar onde se encontre também um espelho. Múltiplas pequenas janelas mostram tanto Judy, a irmã loira de Penny, penteando-se na nave, quanto diversos lugares na Terra e em vários outros planetas.

Assim como na visão por trás dos espelhos na caverna, representando portais interdimensionais, as pinturas de Arruda operam como pequenos recortes no espaço e tempo. Suas imagens fantásticas são como aquelas que guardamos na cabeça e vamos recolorindo à medida que o tempo passa, sendo capazes, assim, de transformar o vínculo com o real para poder recortar e guardar tão somente o que interessa. A atração da visão do mundo ideal e a vertigem do movimento do olhar, de entrada e saída de cada quadro, de cada atmosfera, remetem à vertigem da queda de Alice. Atrás do olho, segue o espírito, mas como o corpo não pode ser transportado, abruptamente estamos de volta à sala e, assim, podemos retornar novamente para dentro da imagem e perfazer tal movimento infinitamente, experimentando essa espécie de tele transporte poético que o artista gentilmente nos oferece.

Publicado no catálogo da exposição "Lucas Arruda lugar sem lugar", Instituto Iberê Camargo, 2021, Porto Alegre/RS.

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