Tarsila - Pintura Macia
2015
(versão não publicada)
São muito claras, nas pinturas de Tarsila do Amaral, as influências das lembranças de sua infância vivida nas fazendas no interior do estado de São Paulo. Observando as pinturas realizadas durante o período que vai de 1923 a 1933, período este que abrange tanto a fase Pau Brasil tanto quanto a Antropofâgica, destacam-se vários elementos nas paisagens que remetem ao universo interiorano paulista. Mesmo quando o que está representado é o cenário urbano, observa-se uma organização que parece acontecer através de um olhar caipira sobre a cidade. Há uma determinação de lugares específicos para as coisas, os elementos são arranjados cada qual em seu canto, configurando uma concepção espacial curiosa e de certa forma doméstica. Em "São Paulo" tela de 1924, as edificações estão ao fundo com uma palmeira ao centro dividindo-as, mais ao lado no alto está o trem, dele pode-se traçar uma linha de equilíbrio diagonal com a árvore redonda abaixo à esquerda, mais a frente separados por um gramadinho oval protagonizam a cena uma bomba de gasolina vermelha ao lado de um poste de iluminação azul. Deste modo a cidade parece arrumada para o olhar do observador tal como a sala para receber as visitas.
Esse aspecto doméstico da organização do espaço reflete em parte a infância de menina passada ao lado da mãe, mas talvez desse tempo, a paisagem, bem como as cores do lugar, sejam o que mais se perceba nas pinturas e o que mais tenha marcado a memória da artista. A vegetação rica e variada, com cactos e flores, pedras espalhadas por onduladas colinas, típicas da região próxima as cidades de Capivari e Monte Serrat onde ficavam as fazendas. Cravadas no solo as pedras se apresentam "em formatos variados, origem e estímulo à imaginação, seus limites bem delineados, multidão muda sempre em cerco... Ao pôr do sol essa 'gente' reflete bem o universo de Tarsila, suas figuras recortadas, os volumes irreais arredondados, as formas contra um fundo liso".
As cores tão brasileiras que Tarsila intencionalmente trouxe para as telas, foram de encontro com o estabelecido até então, a cor européia das paletas dos artistas mais convencionais. Também não é a cor fauvista ou expressionista, que Anita Malfatti mostrou em 1917 e que Tarsila conheceu melhor em sua viagem a Paris em 1920, quando visitou o salão de Outono no Grand Palais aonde viu "muita natureza morta, mas daquelas ousadas em cores gritantes e forma descuidada" . Em suas telas aparecem as cores descombinadas do interior, rosas, laranjas e azulões, através do que Mário de Andrade denominou de "um certo e muito bem aproveitado caipirismo de formas e de cor, uma sistematização inteligente do mau gosto que é dum bom gosto excepcional".
O gosto por essas cores, pela paisagem brasileira povoada pelos personagens que nela habitam, teve um grande impulso com a viagem a Minas Gerais, em fevereiro de 1924, em companhia do escritor e poeta suíço-francês Blaise Cendrars, junto com vários modernistas. A visualidade do Brasil simples e popular, com as tradições mineiras e a decoração das moradias das pequenas cidades teve o seu grau de exotismo sensivelmente ampliado através do olhar do estrangeiro do poeta. O grupo voltou tal como quem regressa de um redescobrimento da cultura nacional, da obra de Aleijadinho e de Ataíde, da história de Minas de século XVIII.
Sobre esta questão das cores em suas telas Tarsila fez o seguinte comentário em entrevista em 1939 : "Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras" e referindo-se ao período inicial de sua formação "Segui o ramerrão do gosto apurado... Mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo, verde cantante, tudo em gradações mais ou menos fortes, conforme a mistura de branco".
As gradações das cores as quais a artista se refere, constituem o elemento responsável pelo que pode-se perceber em sua obra como uma maciez de formas. Uma paisagem mansa, não agressiva, arredondada, por vezes contendo figuras humanas deformadas por escorço, tal como "A Negra" de 1923 ou o "Abaporu" de 1928 que serviu de ícone inspirador para o Manifesto Antropófago escrito por Oswald de Andrade. A impressão de volume se dá então pelo uso constante de um degrade na construção das figuras, a variação bem demarcada de cada cor indo do seu tom mais forte para o mais claro.
A associação desses supostos volumes com uma impressão de maciez, é reforçada por outros dois elementos além da gradação com o branco que são: a escolha das cores e a predominância de linhas arredondadas. Quando Tarsila opta por trabalhar com as cores de sua infância, as cores do calendário das festas populares, faz com que suas pinturas de certa forma, se assumam femininas. Ao lado dos assuntos brasileiros que desenvolve, tanto os que dão conta de uma magia popular como "A Cuca", tanto quanto os que refletem questões da sociedade como "Morro da Favela" de 1924, é possível estabelecer relações de conforto e aconchego em cores tão caseiras de nenhuma forma agressivas. Soma-se a isso o constante arredondamento das formas, linhas sinuosas e a escassez de arestas, por onde o olhar passa, escorrega e tem alguma dificuldade em se fixar, passando de uma figura à outra, percorrendo o assunto da tela de lá prá cá, de cá prá lá.
Outro aspecto interessante em relação a essas sensações de conforto que se pode observar, é a curiosa ausência de espinhos nos cactos, freqüentemente representados que surgem também macios e plácidos ao lado dos outros volumes. Presença constante nas telas dos anos 20, a vegetação, seja mais escassa nas cenas de cidade ou abundante como quando a artista reinventa a natureza, como em o "O Lago" de 1928, é passível de inúmeras análises sugestivas.
A vegetação nas telas de Tarsila parece inspirada nas formas das suculentas, família de plantas parente das cactáceas, que tem geralmente a aparência rechonchuda e roliça, entre as mais populares : as rosas de pedra (Echeveria elegans) e o dedo de moça ( Pachyphytum viride).
Essas plantas são em sua maioria de pequenas e de porte médio e visualmente podem ser entendidas como uma miniaturização de plantas maiores comuns na paisagem brasileira . Têm superfície lisa e sendo sempre arredondadas e também por seu tamanho, parecem um pouco plantas de brinquedo, coisa que não existe, vegetação de desenho animado. - Dudleya hassei.
Na pintura "Antropofagia" de 1929, onde duas figuras humanas tal qual nativos desnudos, se entre cruzam no primeiro plano, a figura feminina inclusive repetindo o grande seio de "A Negra", surge por traz delas de novo a misteriosa vegetação. Num verde escurecido pelo contraste da luz de um céu rosado que vem de traz, é formada por sinuosos cactos macios. O modo como Tarsila trabalha a variação de luz nos verdes faz com que as superfícies pareçam de veludo, refletido um suave brilho igual ao desse tecido. A tela toda caminha para o surrealismo, que surgiu mais evidenciado ainda em outras pinturas como "Distância" de 1928 e "Sono" de 1929. Nesse contexto, em "Antropofagia" do meio dos cactos surge abrupta uma grande e solitária folha de bananeira e simbolizando o sol está o que parece ser uma rodela de laranja.
Em "Sol Poente" de 1929, tela também da fase mais surrealista, a vegetação já se encontra totalmente revolucionada e o que já não mais se pode definir como cactos, plantas cilíndricas de ponta arredondada vergam para a direita como vergam-se as árvores que crescem em local de vento. Ao fundo á esquerda estão uns poucos cactos remanescentes. Mas nesta tela, onde cinco animais se encontram num lago á frente, o que mais chama a atenção é sem dúvida o que lhe dá título: o sol poente e o céu que ele projeta. Neste céu o degrade do laranja para o amarelo é intenso e espalhado por vários arcos que dividem o espaço.
Se foi possível perceber o volume macio dos corpos das figuras arredondadas e também a maciez da vegetação, nesta tela, este céu completa a idéia de uma paisagem construída como se costuram os acolchoados. Essa visão do macio, que pode parecer uma visão forçada sobre a obra de Tarsila do Amaral, e que talvez realmente o seja, é porém decorrente da observação das formas nela contidas, que criam sem sombra de dúvida um universo particular, uma natureza reinventada. Um universo impregnado da personalidade da artista, que nele trabalha despretensiosamente sua visão feminina do mundo e com segurança coloca as coisas nos lugares que acredita próprio para elas. A organização das telas então se torna muito própria também, sendo fácil distingui-las no meio das de outros tantos artistas de seu tempo bem como dos artistas de toda parte.
As figuras, as cores e a narrativa com assuntos como: o riacho, os laguinhos, a fazenda com as palmeiras, o sol, a lua, o estranho ovo e a cobra grande, tudo evoca a memória e é capaz de transportar o observador para a paisagem de um sonho do Brasil. Onde ouvem-se trechos das cantigas como : "Cunhatã te esconde lá vem a cobra grande á...á..." ou "...foi Bôto sinhá, foi Bôto sinhô..." ou " Eu vou dizer a meu sinhô, que a manteiga derramô...a manteiga não é minha a manteiga é de nhônhô...". Através desta visão que procura enxergar uma pintura macia, compreende-se em Tarsila, uma proposta plástica de almofadamento da natureza das pessoas e da paisagem. Não intencional, essa perspectiva se firma aos poucos, conforme passam os anos, em comparação com as poéticas de seus contemporâneos e no que mais recentemente se pode perceber como influência de sua linguagem na produção das gerações que a sucederam.