Bolo pra vida toda
2018
O artista manipula indícios como quem escreve um conto sendo capaz de obter as mais intensas reações através das mais tênues alterações.
Quatro ovos, quatro cenouras médias, uma xícara de óleo, dois copos de farinha, mais dois de açúcar, acrescentar o fermento no final, bater tudo no liquidificador e, uns quarenta minutos no forno, está feito. Para este delicioso bolo caseiro só falta agora decidir se a cobertura será de brigadeiro, num ponto mais mole do que o ponto de enrolar, ou se será a receita tradicional de cobertura de chocolate. Por ser muito comum nas casas e estar também à venda nas melhores padarias, a imagem deste bolo tipicamente brasileiro, receita fácil de preparo rápido, é a figura emblemática central na instalação Primeira parte do fim. Sendo o único elemento colorido presente no conjunto, o bolo de cenoura cortado em cubos agrega à cena uma forte carga simbólica por meio de associações positivas que sugerem familiaridade e aconchego, evocando memórias de uma infância feliz. Bolo é bom e sustenta, e pode ainda, em caso de desconsolo, assumir um caráter atenuante, aplacando angústias, reorganizando afeto e estima pelo efeito da doçura associada à textura macia. Ao ser engolido, preenche fisicamente um buraco que, no caso, encontra-se mais na alma do que no corpo: mesmo assim, o resultado é garantido e o infeliz reconfortado.
A satisfação inicial que a imagem positiva do bolo suscita com suas cores fortes e contrastantes, marrom e amarelo, é, no entanto, bruscamente confrontada pela desconfortável estranheza que complementa a cena toda. Insinua-se um melancólico fim de festa, com fuga rápida do local, uma cena de abandono com cadeiras em desordem. A escala agigantada de tudo acentua o incômodo na percepção desse ambiente que não é de fato caseiro, mas institucional. Composto por uma mesa em U, dessas para reunião de muitas pessoas, com cadeiras padronizadas de design simples, brancas, lembrando eventualmente o mobiliário do refeitório de um ginásio escolar. A mesa em formato de U, no entanto, está parcialmente recoberta por uma quantidade absurda de bolo, bolo pra vida toda. Um bolo gigante desses que são servidos na rua em data de aniversário das cidades ou em comemoração religiosa, nas festas católicas em igreja de bairro, no dia do santo que dá nome à paróquia.
A junção dos diversos elementos na instalação de João Loureiro propõe uma insólita alteração da normalidade, num movimento que caminha de maneira discreta indo da ordem do real para uma outra ordem fantasiosa, surreal. Se contemplado com a devida atenção, o cenário do bolo imenso, associado à escala agigantada e à cena inteira com cadeiras reviradas, desencadeia, em quem o observa, uma sequência de pensamentos paranoicos e faz pensar: “que diabos aconteceu por aqui?”. Uma questão temporal irrevogavelmente presente sugere suposições sobre o momento anterior, à medida que o olhar percorre a instalação, o visitante, atento aos pequenos detalhes, bem como à meticulosa disposição dos elementos, verifica uma sequência lógica de fatos ficcionais. Percebendo que uma boa parte do bolo já foi consumida, constata que havia ali muita gente, crianças quem sabe. Alternando entre o trágico e o banal, especula-se sobre que tipo de acontecimento veio interromper a festa provocando o súbito desaparecimento de todos: um simples sinal escolar ou teria sido um alarme de incêndio...
A alteração da escala gera, por sua vez, uma sensação de afastamento, de não pertencimento, remetendo a acontecimentos em outra esfera da existência, de algo que se passou num outro mundo habitado por seres maiores. A associação mais evidente, contudo, é a da visão de uma criança pequena para quem todas as coisas se apresentam naturalmente grandes, um lugar onde as cadeiras são altas e difíceis de se subir. Aqui, Loureiro altera a escala de forma poética organizando reminiscências, feito lembranças indecisas, como as que se guarda do tempo da pré-escola. Quando, frequentando os primeiros anos do ensino escolar, se descobre que, além de você e da sua família, existem um monte de outras crianças pertencentes a outras famílias, com mães e pais diferentes. E o mundo então se apresenta intensamente mais complexo e angustiante em sua dimensão descomunal. Um universo intimidador pra toda criança, que aponta para muito além das fronteiras do conforto do espaço de sua casa, a essa altura já tão seguramente mapeado, em direção ao incompreensível, ao inexplicável.
Operações semelhantes podem ser vistas em outras instalações e objetos criados por Loureiro ao longo de sua densa produção. Desde o princípio, há em seu repertório um claro fascínio pelo design de mobiliário e questões ligadas à funcionalidade e à eficiência das coisas. Muitas vezes, na elaboração de suas obras, organiza procedimentos através da manipulação e alteração do desenho do próprio objeto, seja por uma modificação de suas proporções, pela subtração de partes ou ainda pelo emprego de materiais insólitos que conflitam com o provável, com aquilo que se esperaria encontrar. Assim, muitas das imagens suscitam o fantástico e o fabuloso ou até mesmo o absurdo, como um carpete verde que parece crescer feito grama ou como no caso do falso armário que é na verdade uma porta, na instalação numa sala com uma passagem secreta disfarçada de armário.
O artista elenca, desta maneira, uma sequência de metáforas encadeadas na construção de uma realidade alegórica onde as serventias e usos são subvertidos, criando um curioso paralelo na sugestão de uma existência clandestina. São movimentos que fazem suspeitar da aparente normalidade da vida, da casa e das pessoas, conflitando com o anseio comum de todos de se parecer com os outros. Na vida em sociedade a semelhança aparente é um fator de conforto importante, gerador da ideia de pertencimento. Casa parecida, carro parecido, roupa parecida, vida parecida são coisas que camuflam diferenças e garantem o lugar do sujeito em seu grupo ou no grupo do qual deseja fazer parte. Nesse contexto da insistência de normalidade, anomalias carecem ser refutadas, para tanto, certos desejos bem como instintos inconvenientes devem ser reprimidos, ou ao menos ocultados.
João Loureiro, indo na contramão do espírito tradicionalista da coletividade, cria com sua poética um atalho para a uma visão alternativa à da existência dentro de valores padronizados. Oscilando entre o lúdico e o melancólico, oferece a experiência de uma paranoia saudável como um sintoma positivo pra percepção de subcamadas do real, concebendo um universo particular, uma arquitetura absurda, onde a inconsistência das certezas é a principal garantia.
Leda Catunda