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O sonho bom (sobre a pintura de Luiz Zerbini)
2013

Quando experienciamos um sonho bom, todos os detalhes envolvidos no enredo que se desenrola nos parecem tão completamente perfeitos. Os detalhes, na construção do sonho bom, estão assim adequados ao assunto principal e trazem um requinte de cores, contrastes, temperatura e às vezes até de sabor e cheiro. Por sua vez, como sempre, o assunto principal do sonho envolve a realização fantasiosa dos nossos mais profundos desejos, inclusive os inconscientes, aqueles que temos sem saber que estão lá. Ondas de emoção, bem como de satisfação, são irradiadas da mente para o corpo, mecanismos de recompensa são ativados e tudo caminha prazerosamente bem até que inevitavelmente, a um certo ponto, surge o final – causado por algum tipo de interrupção ou não, um final simples e natural que chega com o amanhecer. Um estranho sentimento de perda acompanha o despertar, assim que nos damos conta de que as imagens tão vivas até então começam progressivamente a esvanecer, a desaparecer. A sensação de prazer ainda presente pode durar até o fim do dia, no entanto à medida que a consciência retoma seu império, todo o enredo tende a se desestruturar. Esse processo de desintegração fica bem pior ainda quando, na tentativa inútil de revivê-lo, tentamos contar o sonho para alguém. Nessa hora, aquilo que nos parecia a perfeita expressão da suprema felicidade se transforma numa história sem pé nem cabeça, sem graça e até mesmo chata e somos invadidos por um sentimento de frustração. Então, num último recurso, recusando o prejuízo do esquecimento eterno, que é o destino geral de todos os sonhos, apelamos para os detalhes. Talvez, se pudermos nos lembrar da arquitetura, da luz, das roupas, objetos e arredores, sejamos capazes de manter por mais tempo a adorável sensação de conforto e bem estar. Ainda, sob o olhar da psicologia, tentar lembrar do sonho bom com perfeição talvez nos ajudasse a compreender os tais desejos inconscientes e entender o que realmente queremos, já que muitas vezes na vida empreendemos enorme esforço em coisas que efetivamente acabam não correspondendo às expectativas iniciais.

Fomos ao atelier do Luiz e recostada na parede continuava a mesma pintura que eu já havia visto um mês atrás. Era agosto e a tela, segundo ele, já estava lá desde fevereiro. Tela grande de paisagem, com muitos detalhes, obsessivamente trabalhada como outras pinturas igualmente grandes e ``figurativas`` que Zerbini faz. Parecia estar pronta, no entanto assim que iniciamos nossas considerações positivas sobre o resultado obtido, nossos elogios, ele nos interrompeu dizendo que ainda não estava pronta. Qualquer que fosse nosso juízo sobre a pintura, este teria que esperar, pois ele não considerava que essa tela, intitulada ``Serrote``, estivesse definitivamente acabada. Não estava portanto pronta para ser ``lida``, interpretada ou avaliada. Deste ponto em diante, Luiz gastou uns vinte minutos enunciando problemas e ausências que ainda deveriam ser resolvidos. Movimentando-se em frente à tela, percorrendo-a com o olhar, apontava, avançava e recuava como numa estranha dança, demonstrando intimidade física com o objeto de sua criação. Falava com cautela, com minúcia, como que para não se esquecer de nada. Tudo que faltava carecia ser listado; como se alguma ausência específica numa imagem que, claramente, já se nos apresentava repleta em todos os seus centímetros lineares, fosse capaz de causar algum tipo de comoção ou impacto. Como se, pelo desfalque gerado por esses elementos faltantes, pelo fato de não estarem presentes junto com os outros tantos, centenas deles provavelmente, que já se alinhavam na composição, todo e qualquer observador apontaria o dedo em direção à imagem na tela alardeando para denunciar tal omissão.

A imagem carecia completude total para ficar pronta e Zerbini empenhava-se, concentrado, para garantir o feito. No meio, é ditado antigo: escultura é difícil de começar e fácil de acabar e pintura, fácil de começar e difícil de terminar. Porque para a primeira é necessário reunir material, calcular peso, escala e estrutura, e só quando todas as etapas estiverem devidamente antecipadas torna-se possível começar e daí seguir o projeto, para sem muita angústia concluir. Já para a pintura, são necessários tão somente tela e tinta. Lançando mão de algum estudo básico ou não, inicia-se com um gesto de preenchimento sobre o fundo branco e vazio. Seguem-se então camadas e sobreposições, inúmeros recursos de recobrimento envolvendo transparências e opacidades, por meio dos quais é possível modificar a imagem. As possibilidades quase infinitas de alteração fatalmente retardam o processo de decisão de quando terminar. Nada mais comum nas aulas de pintura do que os alunos angustiados perguntando seguidamente: E agora? Acha que ficou pronta?

Perplexos pela empolgação do artista em nos dizer tudo que faltava ainda, nos sentíamos um pouco embaraçados de questionar sobre a verdade tão obvia: mas a tela já está tão cheia…? Um mês antes, a luz no céu era cor de salmão, agora apresentava-se num azul reflexivo, metalizado, puxando para o prata. O rio, antes liso de uma cor já difícil de lembrar qual era, tantas foram as mudanças no intervalo de um mês para o outro, corria agora com uma textura de faixas finas e onduladas pintadas com um tipo de amarelão.

Afora a questão da super lotação de elementos e detalhes, boias, uma esponja amarela, um garfo espetado numa fruta, folhas e musgos multicoloridos, um pé de cana, chuveiro, esguicho, corda azul de nylon, âncora, um radinho da marca Sanyo entre outros, há que se chamar atenção para a escolha da imagem como um todo. Trata-se aparentemente de um cenário de pescaria protagonizado por uma bomba d`água ajeitada sobre uma caixa d`água plástica redonda e cinza. Seria talvez um quintal, o fundo de algum lugar com vista para um rio que passa atrás. Um lugar bem precário, ainda que funcionando, na ativa, com gambiarras de fios puxados e tomadas em lugares improváveis com a bomba ligada jorrando água.

Trata-se de um todo composto por um monte de poucos juntos, o agrupamento resultando em uma paisagem significativa, de caráter niilista. A precariedade do cenário, um canto de um lugar qualquer, parece refletir um estado de humor específico intencionalmente atribuído à cena pelo artista. Esta é composta por elementos simples e dispersos, próprios do lugar, que promovem, em sua desordem natural, uma espécie de caos poético. Nessa obra, Zerbini privilegia claramente o aspecto sublime em detrimento do belo, ao conferir a este cenário um ar melancólico. A escolha do assunto para pintar inicia o processo. Contribui ainda para essa leitura a sensação de umidade, construída não somente pela coisa da água mas também pela temperatura das cores amarelo-esverdeadas, um pouco pálidas. Outro fator é a representação do espaço na tela, algo opressor, comprimido e amontoado na frente e que depois se estende abruptamente na figura poderosa e cheia de velocidade do rio caudaloso que atravessa a cena de um lado ao outro. Em seguida, na outra margem, surge um enorme pedralhão, acima, frações esparsas da luz do céu. O sublime então se impõe pela coadunação do elemento belo associado ao estranho. O belo, refletido no excesso de detalhes e no visível afeto que o artista parece nutrir por eles e o estranho, na escolha da imagem, um lugar de alguém onde não há ninguém. Havia, mas foi embora, deixou o rádio ligado e a bomba funcionando, restaram rastros, vestígios... Os detalhes todos presentes agora, com uns cinco ou seis passarinhos que não havia antes e mais um bocadinho de musgo nas tábuas de madeira, além da trama de uma rede de pesca que finaliza o pedralhão, conferindo uma nova textura onde antes havia um liso, vão fechando a tela toda. A superfície agora pode ser lida como uma trama, uma renda composta por esses detalhes de memórias, desejos e sentidos embaralhados em imagens colecionadas. Foram sendo agrupadas para preencher, para compor e somar, e depois multiplicar e expandir uma visão sensível de um lugar onde normalmente ninguém enxergaria nada. Num mundo prático, orientado para funções cada vez mais rápidas, fazer mais para ganhar mais, gastar, fazer de novo, quase uma vida de formiga. Um mundo exigente que acaba se tornando invisível em razão de tanta pressa e só pode ser bom então poder parar e enxergar, e depois fazer os outros verem também.

Respondi ao email dizendo que não estava achando nenhum serrote na cena, se por acaso o objeto do título estaria atrás da vassoura ou coisa assim? E ele respondeu que não havia de fato nenhum serrote e que este era o nome do lugar onde ele havia visto essa ``caixa d`água com a bomba em cima``. Falou sem pensar, respondeu sem se dar conta do inusitado, de que vivemos esbarrando no banal, no confuso, na desordem, e que este cenário vem a ser a antítese do belo e do poético para quase todos e que, só para ele, aquele seria um grande encontro com um caráter de revelação. Um lugar calmo, pleno e tranquilo, sem ausências, excessos ou necessidades, onde todos os detalhes do sonho bom permanecerão, agora para sempre, organizados em sua tarefa sublime de promover as boas sensações

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