A grande pintura
2014
Sinto falta de ar quando fico pintando por muitas horas no ateliê. Não é bem que o ar falte e não é que não esteja respirando. O ar entra, mas não sai. No intuito de prestar atenção no que faço, inconscientemente prendo a respiração, deixando de expirar. O resultado é uma estranha sensação de desconforto ao final de uma longa seção de pintura, caracterizada pela necessidade de ficar buscando mais ar, de racionalizar a respiração forçando a expiração para dar lugar para a entrada de ar novo. Não é grave, passa rápido e então quando a respiração se normaliza, a energia que estava toda concentrada na cabeça volta a circular pelo corpo.
O processo para criação de um trabalho de arte, possui um numero grande e indeterminado de etapas e pode variar radicalmente de um artista para outro. Numa descrição rápida, no meu caso, este processo normalmente começa com uma idéia, um `insight`, que acontece como um flash metal. A idéia, muitas vezes disforme é de natureza intuitiva e vai se transformando ainda na mente, numa intenção, numa vontade. Aos poucos essa vontade vem a se tornar imagem. Afim de concretizá-la, são feitos normalmente estudos em desenhos e aquarelas. Como venho trabalhando com apropriação de imagens prontas, que já vêm impressas em tecidos e camisetas, entre outros, inicio conjuntamente uma busca por materiais. Realizo pinturas pequenas para testar materiais e procedimentos construtivos. Quando finalmente todos os recursos necessários encontram-se disponíveis é possível partir para a execução da pintura-objeto que precisará ainda alcançar a escala apropriada e os contornos finais adequados. Consultando constantemente a ideia mental inicial me concentro para conseguir aproximar o objeto real que vai surgindo, ao pensamento abstrato que o originou. De tal modo que, os principais conceitos envolvidos possam ficar devidamente evidenciados. Buscando realizar assim, o casamento mais perfeito possível entre o que se desejou e aquilo que se é efetivamente capaz de concretizar. O ato de criação consiste na atribuição de significados à soma de imagens, cores e formas, com a intenção de inaugurar novas leituras, novos entendimentos para o que nos cerca.
A etapa da pintura é antecedida pela construção do objeto propriamente dito. O aspecto artesanal, da realização manual tem sido intencionalmente reforçado por acreditar-se positiva a contribuição dessa linguagem tão característica da cultura brasileira. Presente nas rendas, bordados, objetos de couro e toda sorte de tapetes de palha trançada, crochês e etc, são realizados com desenhos que se repetem à décadas alcançando dessa maneira um curioso grau de sofisticação visual. A camada final de tinta tem a função de contextualizar o conjunto, unificar imagens pela cor, num todo poético. É nessa hora, em que todo aparelho perceptivo se afina para elaborar as nuances de cor, que me falta o ar. Tudo isso está colocado de forma sintética e abreviada e apesar da satisfação pela pintura terminada e da sensação de bem estar pela realização da grande pintura, os questionamentos, ansiedades e inseguranças nunca cessam.
Assim penso descrever a natureza básica do fazer do artista, de trilhar caminhos insertos e de reinventar coisas através desse mesmo trilhar. Além de inventar o trabalho, a obra por assim dizer, o artista necessariamente precisa inventar a si mesmo. Criar um modo próprio para se mover por diferentes esferas afim de garantir independência de pensamento e liberdade para sua poética.
Publicado no Revista Carta na Escola, Ed. Confiança, 2014, São Paulo/SP